Encontros do Audiovisual Brasil-África reflete sobre coproduções e conexões possíveis entre os dois territórios
Produtores e realizadores debatem sobre estratégias e desafios para produções conjuntas entre os dois territórios
Por Glaucia Campos
O Encontros do Audiovisual Brasil-África contou com a participação de produtores e diretores do Brasil e de diferentes países do continente africano em mesas redondas conversando sobre cinema e os processos de produção de filmes em ambos os territórios. Na tarde da última quinta-feira (19), aconteceu a mesa “Coproduções Brasil-África no cinema: uma parceria em expansão”, que discutiu sobre o cenário de coproduções entre os dois locais, os desafios e experiências dos produtores atuando nessas colaborações e os caminhos possíveis para fortalecer esses laços.
O bate-papo foi mediado pela produtora e diretora sul-africana Tiny Mungwe e contou com a participação de produtores que atuam no Brasil, como Keyti Souza, da Tem Dênde Poduções; Júlia Alves, Quarta-feira Filmes; Caio Bonfim, DreamCoat Films. Além deles também estiveram presente Elias Ribeiro, que atua na Urucu Media na África do Sul; Luciana Ceccatto Farah, produtora na Mucii Pictures e Yanis Gaye, produtor criativo franco-senegalês fundador das produtoras Gorée Cinema e do estúdio de cinema Yetu Un(limited).
Ao longo da conversa os profissionais compartilharam suas vivências atuando em coproduções e convergiram para um mesmo caminho: de que o trabalho conjunto entre Brasil e África no audiovisual é uma forma dos países do sul global se apropriarem de suas próprias narrativas. Nas palavras do produtor Caio Bonfim, é uma forma de unir histórias de locais marcados pelo processo da colonização europeia e retratar a negritude. “É muito importante, ainda mais por essas feridas abertas afrodiaspóricas que acontecem dentro e fora do mercado”, ressalta Caio.
Conexões e colaborações
Em um cenário global em que grande parte das narrativas ainda são dominadas por visões eurocêntricas, a aliança entre Brasil e África possibilita que histórias autênticas e inclusivas surjam. Contudo, apesar de existirem semelhanças entre os dois territórios, ao realizar as coproduções os profissionais enfrentam alguns desafios culturais e logísticos.
Para Keyti Souza, produtora executiva na Tem Dendê, compreender as diferenças culturais e religiosas é crucial para garantir que a narrativa seja relevante em cada contexto local. “Temos algumas limitações com certos personagens por questões culturais, como personagens LGBTQIA+, que podem não ser aceitos em todos os países do continente africano […] esse é um item essencial no check-list de qualquer produção: entender as limitações e barreiras culturais que vão moldar o conteúdo, tanto em termos de narrativa quanto de segurança para a equipe envolvida. O que para nós, no Brasil, pode ser uma herança valiosa, pode não ressoar da mesma forma em países africanos, que estão focados em novas abordagens e outros tipos de narrativas”, explicou.
Além disso, Keyti ressaltou a importância de acordos de coprodução que garantam a equidade entre as partes. “Mesmo que o projeto pareça colaborativo, no final das contas, ele pode acabar sendo rotulado como um filme europeu, por mais que atores e cenários africanos estejam em destaque”, afirmou.
Essa reflexão também foi destacada por Júlia Alves, que trabalhou em coproduções com Moçambique, através de sua produtora Quarta-feira Filmes: “É um processo de aprendizado constante. Ao desenvolver projetos com talentos africanos, precisamos construir colaborações que sejam verdadeiramente participativas, onde ambas as partes estejam envolvidas desde o início na concepção do projeto”, disse.
Alves destacou ainda a importância de acordos sólidos que garantam que as obras resultantes dessas parcerias sejam distribuídas e valorizadas igualmente em ambos os lados. “Temos que pensar muito bem em como essas produções vão se desdobrar, a quem pertencem depois, e garantir que essa relação seja realmente compartilhada. Só assim podemos fortalecer laços e criar algo que, de fato, represente o Brasil e a África de maneira igualitária”, afirmou.
Os desafios de investimento
As coproduções audiovisuais entre o Brasil e África também encontram alguns desafios, principalmente financeiros. A busca por financiamento, adaptação de narrativas culturais e construção de parcerias igualitárias são algumas das barreiras que os produtores encontram ao tentar desenvolver projetos entre os territórios.
Elias Ribeiro, fundador da produtora sul-africana Urucu Media, comentou que muitas vezes é difícil conseguir investimento tanto no continente africano quanto no Brasil para viabilizar as produções e a solução costuma ser expandir para outros investidores. “Estávamos tentando fazer um filme, levei para todos os possíveis investidores internacionais, e isso deu ao projeto uma nova visibilidade […] precisamos ser criativos com as colaborações. Esses espaços são onde começam nossa política, onde conseguimos fazer nossa voz ser ouvida e criar filmes que reflitam nossas realidades”, comenta o produtor.
A visibilidade global é uma das formas de superar as barreiras financeiras, mas não é a única solução. Elias destaca que, mesmo com financiamento, há sempre riscos envolvidos. “Nós coproduzimos com o Brasil em 2015, mas naquele momento, o financiamento no Brasil estava praticamente indisponível e aceitamos um grande risco com a Amazon, que não deu a comissão total. Era uma coprodução, e nós pagamos os direitos para que o diretor fizesse o filme como um filme sul-africano”.
A criatividade para buscar financiamentos também é destacada por Yanis. Recentemente, ele cofundou uma nova empresa com sede na França, não apenas por questões logísticas, mas também como uma forma de conseguir mais recursos para as produções. “Criamos instrumentos que servem para necessidades específicas e soluções dentro da indústria. Uma vez que a primeira semente é plantada, podemos crescer dentro do cenário de produção de filmes. Recentemente cofundei uma nova empresa com sede na França, por razões óbvias, pegar o dinheiro dos colonizadores”, brincou o produtor.
“Ter uma chance de trabalhar uma cooperação sul-sul nos permite duas coisas: primeiro de tudo permite trabalhar estrategicamente sobre o fato que nós não vamos deixar ninguém contar qual a história que aconteceu e nós vamos trabalhar com o sistema, obviamente, porque em algum ponto você sempre tem que confrontar com o sistema. Especialmente em locais onde os órgãos financiadores são majoritariamente subsidiados”, acrescentou Yanis.
A relação entre coproduções
Ao construir laços de coproduções é importante que exista uma visão compartilhada entre os produtores desde o início do projeto, principalmente devido ao fato de, muitas vezes, perdurar por anos. Keyti Souza destacou a importância de pensar estrategicamente sobre o projeto como um todo, para garantir que seja colaborativo em todas as etapas.
“É importante entender que cada produção é uma relação única e duradoura. Não é uma relação de dois, três anos, é uma relação que você vai ter com uma produtora que vai levar de sete anos a mais. Então é muito importante entender essa energia e a burocracia, porque tem um contrato, tem uma negociação, um acordo bem desenvolvido assinado. É um ponto a se olhar nesse movimento de coprodução internacional”, explicou.
Seguindo o mesmo pensamento, a produtora Júlia Alves acrescentou que há necessidade de acordos justos que garantam a verdadeira propriedade das obras pelos parceiros africanos. “Temos que pensar nos direitos, nos compromissos, e garantir que essas obras sejam realmente compartilhadas e que os artistas africanos tenham a devida representação e controle sobre suas histórias”, explica.
Durante o debate destacou-se a necessidade de uma desconstrução das formas tradicionais de produção, que muitas vezes reproduzem desigualdades históricas. O contexto colonial ainda pesa sobre muitas das práticas da indústria cinematográfica, e os produtores brasileiros e africanos têm se esforçado para encontrar maneiras de romper com esse ciclo. Para Yanis, essa desconstrução é essencial: “Precisamos criar soluções que nos permitam crescer e fortalecer essas parcerias, sempre pensando em como garantir que essas produções sejam nossas de verdade, tanto no Brasil quanto na África”, disse.