Saiba mais sobre a vida e obra de Sarah Maldoror (1929-2020)
O dia 13 de abril de 2020 marcou um falecimento muito triste para os cinemas africanos. Vítima da Covid-19, a cineasta Sarah Maldoror nos deixou aos 90 anos, quando ainda estava lúcida e dedicada à sua luta pelas mulheres nos cinemas da África.
Para quem ainda não conhecia sua vida e obra, decidimos publicar aqui a tradução do trecho do livro Women in African Cinema: Beyond the Body Politic (Lizelle Bisschoff & Stefanie Van de Peer, Routledge 2019) que trata da diretora e sua importância para a história dos cinemas africanos. Leia abaixo.
O trecho original foi publicado na página do Facebook do Africa in Motion Film Festival e pode ser acessado here.
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Cineasta nascida em Guadalupe, Sarah Maldoror, que foi casada com o revolucionário angolano Mário Pinto de Andrade, fez uma imensa contribuição às culturas cinematográficas de Angola e Moçambique, com frequência focando no papel da mulher nas lutas de libertação nesses países. Maldoror, que estudou cinema na ex-União Soviética com o diretor senegalês Ousmane Sembène, começou sua carreira na direção durante os anos das lutas de independência da África, e revela em seus filmes um profundo comprometimento com a história das lutas de libertação. Antes de “Sambizanga”, seu principal longa-metragem de 1972, ela dirigiu o curta “Monangambé” em 1968 na Argélia. Tanto um como o outro foram adaptações de histórias escritas pelo romancista angolano Luandino Vieira. “Sambizanga”, que trata da participação das mulheres nas lutas pela libertação através da jornada da protagonista, é um clássico filme africano que tem sido largamente ensinado, discutido e analisado, e é central para o desenvolvimento dos cinemas africanos.
Por conta da origem caribenha de Maldoror, ela estava no olho do furacão que se deu na edição de 1991 da FESPACO, quando, em um encontro de cineastas mulheres, foi pedido que aquelas da diáspora africana se retirassem. Maldoror deu o seguinte depoimento sobre o acontecido em uma entrevista a Beti Ellerson: “Nos disseram para sair porque não éramos consideradas africanas. Nós estamos na África, é claro que sou africana. Certamente meus pais eram africanos. Por que sou de Guadalupe? Porque meus pais foram vendidos como escravos. Sou parte do grupo de africanos que foram escravizados e deportados” (Ellerson, 2000, p. 165). Hoje ela é vista como uma das mais importantes cineastas pioneiras da África.
Os governos dos países de língua oficial portuguesa tinham um papel importante na formação dos cinemas nacionais depois que os países conquistaram suas independências simultaneamente em 1975. Em Moçambique, a presidente Samora Machel tinha muita consciência do poder da imagem em movimento e se comprometeu com o desenvolvimento do cinema em Moçambique através da criação do Instituto Nacional de Cinema e do convite que fez a Jean-Luc Godard, Jean Rouch e Ruy Guerra à Moçambique para que ajudassem a desenvolver uma indústria nacional. As esperanças de prosperar nos cinemas nacionais com princípios socialistas foram frustradas pelas guerras civis que eclodiram em Angola e Moçambique logo após a independência. As indústrias fílmicas nesses países atualmente crescem a passos lentos, e recentemente poucas cineastas mulheres surgiram, notavelmente Teresa Prata com “Terra Sonâmbula” (2007), sobre a jornada de um garoto em uma Moçambique destroçada pela guerra. Margarida Cardoso começou a dirigir filmes em 1995, em geral explorando temas relacionados a sua história pessoal e social, como a história colonial de Portugal em Moçambique, e a luta anticolonial. “A Costa dos Murmúrios” (2004) em particular aborda a experiência branca europeia em um país africano indefinido nos anos de 1960, diante de um pano de fundo de guerra civil e conflitos. Pocas Pascoal foi a primeira operadora de câmera de Angola, e dirigiu seu primeiro longa em 2012, “Alda e Maria”, sobre duas irmãs que escapam da guerra civil angolana fugindo para Lisboa nos anos de 1980. É significativo que essas diretoras dos países de língua oficial portuguesa contaram histórias do período colonial e pós-colonial e as circunstâncias dos seus países, escolhas temáticas que se aproximam dos princípios do Terceiro Cinema e são uma continuação do trabalho de Sarah Maldoror.
A carreira de Sarah Maldoror como cineasta ilustra o impacto do Terceiro Cinema no cinema revolucionário das mulheres. Ela foi assistente de direção no filme “A Batalha da Argélia” e logo depois realizou um potente documentário político examinando as técnicas de tortura usadas pelos franceses na guerra argelina, “Monangambé” (1968). Seu primeiro longa, “Sambizanga” (1972) ainda hoje é um grande exemplo de uma das mais antigas expressões feministas da ideologia do Terceiro Cinema. Nascida na França e de descendência guadalupense, é considerada uma cineasta africana pioneira por conta do seu longo e profundo envolvimento com o cinema no continente. Ela foi cofundadora do grupo de teatro Compagnie d’Art Dramatique des Griots em Paris em 1956, que treinou e apoiou atores negros. Ela deixou a companhia no início dos anos 1960 para estudar cinema na CGIK em Moscou com uma bolsa de estudos (Bassori, 2016). Maldoror tinha uma afinidade particular com Angola, já que era casada com o líder do movimento de libertação, poeta e filósofo Mário Pinto de Andrade. Com seu interesse na emancipação de artistas negros, assim como seu ativismo nas lutas por libertação, todos os seus filmes abordaram a libertação dos países africanos. Maldoror dá atenção com detalhes às experiências das mulheres nas lutas de libertação.
“Sambizanga” alcançou merecidamente o status de cult como um dos primeiros longas dirigidos por uma mulher negra na África, mas também por conta da única cópia sobrevivente do filme, em 16mm com legendas em inglês, preservada na New York Public Gallery. O filme é baseado em um romance do autor angolano José Luandino Vieira e foi filmado no Congo-Brazzaville. Maldoror usou técnicas de filmagem de guerrilha com a intenção de mobilizar os espectadores, especialmente os ocidentais que desconheciam a brutalidade do regime colonial português. O filme foi banido em Portugal e consequentemente também na sua “província” de Angola. Ganhou importantes prêmios em Berlim e Cartago, mas só foi exibido em Angola depois da independência.
Sambizanga é o nome do bairro de trabalhadores em Luanda onde existia uma prisão portuguesa onde os militantes angolanos eram levados para serem torturados e mortos. O filme começa com a prisão do revolucionário Domingos Xavier pelos oficiais portugueses. Xavier é levado para a prisão Sambizanga onde é ameaçado de ser torturado até morrer por não entregar os nomes dos seus companheiros. O resto da narrativa foca na esposa de Xavier, Maria, que vai de prisão em prisão até descobrir o que aconteceu com o seu marido, experimentando uma dor emocional e física excruciante durante a jornada, enquanto persiste em sua luta e mostra imensa perseverança. Sua experiência de solidariedade entre mulheres é fortalecedora tanto para ela como para aquelas ao seu redor. Ao enfatizar a presença central de mulheres na historiografia, Maldoror disse que “as mulheres africanas devem estar em todos os lugares. Elas devem estar nas imagens, atrás das câmeras, na ilha de edição e envolvidas em cada estágio do fazer fílmico. Elas devem ser aquelas que falam dos seus problemas” (Sezirahiga 1995). Ela, portanto, combina o seu ativismo atrás das câmeras com a sua luta por ter mulheres nas telas dos cinemas africanos.
Tradução para o português: Ana Camila Esteves
* A tradução foi autorizada pela autora Lizelle Bisschoff.
O livro pode ser adquirido na loja Amazon, e sua língua original é o inglês.