As memórias do apartheid na África do Sul e a luta por liberdade retratadas no filme Banido
Com entrevistas, imagens de arquivos e sensibilidade, Banido mostra o cenário do cinema sul-africano durante a censura do regime.
Por Anna Luiza Santos
Uma parte significativa da programação da Mostra de Cinemas Africanos 2024 é atravessada por uma curadoria de filmes que aborda os 30 anos do fim do apartheid na África do Sul. Um deles é Banido (2024), da cineasta Naledi Bogacwi, que expõe como o cinema foi censurado pelo governo do apartheid. O documentário foi exibido na edição da Mostra em Salvador na quinta-feira (19/09/24) e contou com a presença da própria Naledi Bogacwi, no Cineteatro 2 de Julho, conversando com a plateia sobre a produção do filme.
Banido narra os acontecimentos em torno do filme Joe Bullet (África do Sul, 1973, dirigido por Louis de Witt), o primeiro filme com um elenco totalmente composto por pessoas africanas negras. Adjetivado como uma versão negra de James Bond, Joe Bullet estreou de forma independente em Soweto, mas logo em seguida foi banido pelo governo do apartheid e nunca mais foi exibido novamente. Para mostrar as atrocidades da censura no ápice do apartheid na África do Sul, o documentário de Naledi traz a participação de membros do elenco original do filme.
As entrevistas, intercaladas com imagens de arquivo, descrevem do começo ao fim como era viver nesse sistema de censura, destacando a vivência de pessoas negras e brancas, artistas e pessoas do meio que sobreviveram, protestaram, desafiaram ou simplesmente observaram o ápice do governo do apartheid na África do Sul.
Toque de recolher, perseguição policial, prisões, e acesso a saúde e educação negados foram alguns dos elementos desse sistema de segregação racial que aparecem sendo relatados pelos artistas no documentário. Discutindo os traumas, as controvérsias e os desdobramentos do regime, cujo fim, em 1994, completa três décadas este ano, as entrevistas também mostram com sensibilidade e respeito como a população negra sul-africana foi resistência nesse período.
Usando mecanismos como gírias, metáforas e músicas, os sul-africanos burlavam a censura por falarem de formas que os brancos e o regime não entendiam. O panorama completo que Banido transmite mostra que não apenas o cinema passou por censura, mas também a música e o teatro, por serem considerados artes politizadas que desafiavam o sistema.
Em um bate-papo descontraído com o público presente na plateia, Naledi Bogacwi conta que teve que se aprofundar mais no processo de investigação e estudos para entender quais eram os requisitos para a censura durante o apartheid. “Como que ele [o filme Joe Bullet] foi banido? Ele não tinha nenhuma conotação política. Apenas um elenco com atores negros. Foi aí que eu percebi que tinha que fazer um mergulho mais profundo sobre as questões da censura na África do Sul”, reflete a cineasta, contando com tradução simultânea.
Concedendo uma entrevista exclusiva à equipe de comunicação do festival no Cineteatro 2 de Julho, Naledi relatou quais foram as maiores dificuldades para dirigir e produzir um filme como Banido. “Com certeza é conseguir material de arquivo, por serem muito caros e antigos, e contar essas histórias com respeito e qualidade”, diz.
Naledi também debateu sobre a diversidade racial que havia e há na África no Sul e o papel dos brancos antirracistas durante o regime de segregação. “Eu queria mostrar que nem todas as pessoas brancas eram inimigas, nem todos eram a favor do apartheid, como foi o caso do médico Neil Aggett e do diretor de Joe Bullet, Louis de Witt, que era um homem branco que só queria fazer um filme com personagens negros”, destaca.
Em meio a tudo isso, Naledi finaliza afirmando que: “É através de festivais independentes, como a Mostra de Cinemas Africanos, que tem sido possível para mim e para outros cineastas viajar e mostrar para o mundo que as nossas vozes não serão oprimidas”.