30 anos de democracia na África do Sul tem destaque na programação da Mostra de Cinemas Africanos 2024
Desenvolvida em parceria com o Durban International Film Festival, seleção de filmes sul-africanos reflete sobre o legado do apartheid e futuros possíveis para a África do Sul. Cineasta Naledi Bogacwi estará presente com seu filme Banido.
O fim do apartheid marcou um momento histórico na África do Sul, encerrando décadas de segregação racial institucionalizada. O regime, que havia sido imposto pelo Partido Nacional em 1948, legalizou a discriminação contra a população negra, restringindo seus direitos e mantendo a supremacia branca. Em abril de 1994, as primeiras eleições multirraciais e democráticas foram realizadas, permitindo que todos os sul-africanos, independentemente de raça, votassem. Nelson Mandela, líder do movimento anti-apartheid e do Congresso Nacional Africano (ANC), foi eleito presidente, e sua eleição simbolizou a esperança de uma nova era de igualdade e reconciliação.
Marcando os 30 anos da instauração da democracia na África do Sul, a Mostra de Cinemas Africanos, em parceria com o Durban International Film Festival (DIFF), promove uma programação especial de filmes que debatem os traumas, as controvérsias e os desdobramentos do apartheid na África do Sul contemporânea. Com curadoria de Marcelo Esteves, roteirista e pesquisador nas cinematografias da África austral, a seleção conta com 4 longas documentários que trazem diferentes perspectivas do impacto do apartheid na vida dos sul-africanos, e 3 curtas-metragens de ficção que dialogam com o tema de modo mais sutil. Todos são realizados por cineastas da África do Sul e inéditos no Brasil.
A cineasta Naledi Bogacwi vem ao Brasil para apresentar seu documentário Banido, que relembra a trajetória do longa-metragem de ação Joe Bullet (1973), primeiro filme sul-africano a ser produzido com elenco totalmente africano e negro. Andrea Voges, diretora de programação do DIFF, também estará presente na Mostra e acompanhará a programação de filmes sul-africanos e as discussões sobre os 30 anos de liberdade na África do Sul.
A programação conta ainda com a mesa redonda “Três Décadas de Liberdade: o cinema sul-africano em perspectiva”, que acontece no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo. Com a participação da cineasta Naledi Bogacwi, diretora de filmes que tematizam a violência na África do Sul cindida pelo Apartheid, e também da historiadora e professora da USP Laura Moutinho, pesquisadora da história contemporânea sul-africana, a mesa será dedicada à discussão sobre o cinema e a história como dispositivos de produção de memória que buscam tornar inteligível, por meio de narrativas factuais/documentais e também ficcionais, um regime segregacionista que se estendeu por quase 50 anos, produzindo violências que ainda marcam as experiências de vida na África do Sul, mesmo passados 30 anos do seu fim.
Programação de longas-metragens
Banido relembra a trajetória do longa-metragem de ação Joe Bullet, primeiro filme sul-africano a ser produzido com elenco totalmente africano. Em 1973, sob o regime do apartheid, o filme foi exibido apenas duas vezes, em Soweto, para imediatamente ser banido pelo regime. Através de entrevistas com profissionais envolvidos na produção, o doc utiliza o banimento do filme como ponto de partida para recuperar a história de segregação racial perpetrada pelo regime do apartheid. Segundo Marcelo Esteves, o filme é “muito bem realizado, tanto do ponto de vista técnico quanto pela maneira como são conduzidos os depoimentos, encontrando uma forma bastante original de revisitar o tema do apartheid, isto é, através de suas implicações com a indústria audiovisual sul-africana”. A diretora Naledi Bogacwi estará presente na Mostra para apresentar o filme e dialogar com o público.
Não se Atrase Para o Meu Funeral é um documentário biográfico que explora os laços de afeto entre Diane (57), a diretora branca sul-africana, e Margaret Bogopa Matlala (80), sua ex-babá negra, que trabalhou como empregada doméstica para três gerações da família da diretora. O filme, cuja narrativa se inicia com a amizade estabelecida no passado entre Margaret e a mãe da diretora, já falecida, mostra o papel central de Margaret na vida de Diane e de seus familiares, e na própria família de Margaret e nos membros da comunidade rural para a qual ela retorna após se aposentar. Como pano de fundo, estão as relações interraciais primeiramente criminalizadas sob o regime do apartheid e, posteriormente, problematizadas à luz de uma África do Sul democraticamente livre. O curador afirma que, “embora o filme não evite tratar com objetividade a problemática da segregação racial no contexto sul-africano, seu foco reside na ‘ousadia’ de falar sobre o afeto e a amizade – que eventualmente se constroem e perpassam as relações entre babás negras e as crianças brancas por elas cuidadas – num momento em que estamos muito determinados a considerar apenas o lado opressor, nefasto e racista que envolve estas relações”.
Os Recrutas de Londres, por sua vez, é um documentário de cunho histórico, construído através de entrevistas, imagens de arquivo em Super 8 e encenações dramáticas. O filme recupera um episódio pouco conhecido da luta dos sul-africanos contra o regime do apartheid: o recrutamento de jovens ativistas britânicos – levado a cabo nos anos 1970 por Oliver Tambo, membro do ANC – cuja missão era a de entrar como turistas na África do Sul para performar atos contra o regime segregacionista com o objetivo de manter viva, no povo sul-africano, a chama da luta pela liberdade. O diretor se utiliza de preceitos clássicos da narrativa ficcional de um thriller, com muito suspense, reviravoltas e plot twists, o que aproxima o filme de uma narrativa mainstream, mas que em nada desmerece seu valor documental. Marcelo Esteves observa que “há também o cuidado, verbalizado em algumas passagens, de não roubar o protagonismo dos sul-africanos negros na luta contra o apartheid”.
Por fim, Legado: A História Descolonizada da África do Sul também aborda o tema do apartheid, buscando relacionar a enorme desigualdade social e o racismo sistêmico que assola a África do Sul nos dias de hoje com suas raízes históricas calcadas no passado de segregação racial. O documentário se destaca por investigar, sem mazelas, como grupos étnicos com privilégios históricos (brancos de origem africânder e brancos anglofalantes) se relacionam com o presente e o passado traumático do país. Para o curador, “um dos pontos fortes do filme é, sem dúvida, o depoimento do pesquisador de traumas históricos Wilhelm Verwoerd – neto de Hendrik Verwoerd, que se tornou conhecido como o arquiteto do apartheid”.
Programação de curtas-metragens:
Nesta seleção, o curador Marcelo Esteves privilegiou filmes de ficção, uma vez que os longas são todos documentários. As narrativas ficcionais, neste conjunto de filmes, enriquecem o repertório temático e de imagens sobre a África do Sul ao mostrar a classe trabalhadora e a classe média negra imbricadas, refletindo também sobre o legado do apartheid no cotidiano de vidas sul-africanas.
Keba, Interrompido aborda um fragmento da vida de um jovem adulto – pai ausente que acaba de perder a própria mãe – tentando encontrar seu lugar no mundo. O curta tem uma proposta narrativa “mostrar a vida como ela é vivida no mundo real – sem conclusão, pontas soltas, lições não aprendidas, sem encerramento narrativo.” O filme é bastante inteligente ao nos levar a prejulgar a posição social do protagonista logo no início para, em seguida, sermos confrontados com nossos próprios prejulgamentos.
Em A Espera, um homem enfrenta a indiferença do sistema burocrático e de um grupo de cidadãos ao tentar ajudar um idoso que espera atendimento em uma delegacia. O filme, definido pelo próprio diretor como uma “alegoria da complexa sociedade da África do Sul”, proporciona não somente uma reflexão sobre o individualismo, mas também aborda transversalmente temas como o respeito aos mais velhos, a burocracia do estado e a resiliência.
Todos os filmes têm classificação indicativa de 14 anos, salvo indicações em contrário.
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Sobre o Durban International Film Festival (DIFF)
O Durban International Film Festival (DIFF), organizado pelo Centre for Creative Arts da Universidade de KwaZulu-Natal, é um dos mais importantes festivais de cinema da África. Fundado em 1979, é o mais antigo e maior evento do gênero na África Austral, exibindo mais de cem filmes, todos em estreia na região. Além das exibições, o festival promove workshops, seminários e atividades de extensão, incluindo sessões em áreas periféricas sem acesso a cinemas. O DIFF é o único festival na África Austral que qualifica filmes para o Oscar nas categorias de Melhor Documentário e Melhor Curta-Metragem, sendo um dos quatro festivais no continente com essa qualificação. A 45ª edição do DIFF ocorreu em Durban, KwaZulu-Natal, de 18 a 28 de julho. O DIFF mantém desde 2023 uma parceria com a Mostra de Cinemas Africanos, na qual promovem intercâmbios profissionais entre cineastas brasileiros e sul-africanos, bem como curadorias conjuntas de filmes dos dois países.
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A Mostra de Cinemas Africanos em Salvador-Bahia tem apoio financeiro do Governo do Estado, através do Fundo de Cultura, Secretaria da Fazenda e Secretaria de Cultura da Bahia.